domingo, 2 de outubro de 2011

Cinco dias sem Nora


Certos filmes não cabem em categorização pré-definida. Ao ler a sinopse divulgada pelo jornal "Correio Braziliense", percebi que o "Cinco dias sem Nora" se tratava de filme do gênero "comédia". Mas será de que comédia eles falavam, penso eu agora, ao deixar a sala de projeção. A mim me parece mais "drama". No entanto, deixando de lado as categorizações, tão difíceis em tudo na vida, passo a falar da história.
Esse filme mexicano, produzido no ano de 2008, me fez pensar sobre a morte e sobre como os falecidos movem e orientam nosso mundo dos vivos.
A história começa com o suicídio de Nora, ex-mulher de José, o personagem a quem foi incumbida a tarefa de cuidar do funeral da falecida. Nora, de tradicional família judaica, teria que ser enterrada imediatamente, sob pena de se ter que aguardar a passagem das festividades de Passach, a páscoa dos judeus, o que somente ocorreria cinco dias depois. O ex-marido decide, a contragosto, aguardar o término das festividades e o retorno do filho (e da nora) das férias. No entanto, terá que, a pedido do rabino amigo da família, participar dos rituais e das orações que levarão a falecida ao lugar que lhe é destinado.
Enquanto os dias passam, José tem que, a força, se redimir com o passado e com a história de vida a dois interrompida. A ex-mulher, depressiva durante toda a vida, já tentara se matar 19 vezes, somente conseguindo dar fim à vida aos 63 anos de idade. Os protagonistas foram casados por 30 anos e estavam separados há vinte anos. Viviam cada qual em seu apartamento, contudo em prédios vizinhos.
O filme aborda a religião e a maneira como o judaísmo encara a morte e seus mortos. Como o personagem José se diz ateu, ele até cogita enterrar a ex-esposa num cemitério católico (de nome "Cemitério de Jesus"), chegando a fechar contrato com uma empresa de serviços funerários, que leva para a casa da defunta caixão, flores, velas e uma imensa cruz (o que intriga a todos os familiares e amigos).
Como a mulher se mata com overdose de comprimidos, cria-se uma via crucis para enterrá-la, já que os judeus alijam os criminosos e os suicidas em seus cemitérios. Depois de um sepultamento mal sucedido, a família consegue, após muito tentar, enterrar Nora no cemitério onde estão já enterrados os pais de José, no local que posteriormente lhe seria destinado.
Enquanto a história transcorre, percebe-se que Nora já havia planejado tudo, ou melhor, queria ela que o ex-marido cuidasse de tudo relacionado ao seu sepultamento. Até as comidas que seriam servidas pela empregada Fabiana já estavam assim destinadas e separadas. E a vontade da falecida é cumprida: família, parentes e ex-amante, todos unidos em seu nome e em sua memória, mesmo que a sua ausência seja a maior presença no filme.
Valeu a pena. Gostei muito desse filme mexicano e aconselho...

domingo, 26 de junho de 2011

Meia-noite em Paris, de Woody Allen

O filme é mais um daqueles bem típicos de Woody Allen, não fosse pelo fato de ter sua história passada em Paris, o que, diga-se, acaba por engrandecer a história. Belas imagens da "Cidade-Luz" a todo momento aparecem na narrativa e a trilha sonora é belíssima, casando de forma perfeita com o que se conta.
A história é assim: um roteirista de filmes de Hollywood vai com a noiva e com seus sogros para Paris. Para estes, uma viagem de negócios, para o protagonista, uma viagem de descobertas. E elas serão muitas... 
Descobre que não quer mais a vida agitada de Hollywood. Quer, agora, viver na França, vivendo de escrever romances. Já tem, inclusive, um roteiro sendo escrito: vai recontar um pouco da história de Paris na década de 20. Nessa vida nova, a noiva e sua família "certinha" não terão mais vez. Ele anseia liberdade, mas não deixa de ficar ligado ao passado, ao revés, sabe que precisa dos conhecimentos (e até personagens, por que não?) do passado para compreender melhor o presente.
Durante a história, o personagem de Owen se vê transportado ao passado sempre à meia-noite, quando um carro da década de 20 passa pela rua e o pega. A volta ao passado permite ao protagonista o encontro com seus maiores ídolos e figuras ilustres, como Ernest Hemingway, Pablo Picasso, Salvador Dalí, Cole Porter, Fitzgerald, dentre outros. E quando você acha que não há mais personagem ilustre para aparecer, eis que Allen nos brinda com mais mais uma ilustrada aparição. 
Nesse regresso à década de 20, o personagem de Owen conhece - e se apaixona - pela bela Adriana, vivida por Marion Cotillard (aquela que interpretou divinamente Piaf e, por conta disso, ganhou uma estatueta). A moça, uma estudante de moda e ex-affair de várias personalidades da época, parece corresponder aos galanteios de Gil Pender (o nome do protagonista), mas o romance não engrena.
Assim, o noivado é desfeito e o rapaz, como se supunha, fica mesmo vivendo em Paris. E numa noite chuvosa reencontra uma conhecida vendedora de discos e sai com ela em busca do que a cidade tem a oferecer...
Fica a lição de que há em nós um pouco do passado e a sensação de que a vida em outras épocas é sempre melhor do que o atual presente.  Vale conferir!

terça-feira, 24 de maio de 2011

Flores Azuis, de Carola Saavedra

O livro (164 páginas) escrito por Carola Saavedra, chilena radicada no Brasil desde os três anos de idade, fala de amores desfeitos e possibilidades (im)possíveis. Fala de perdas e de encontros irreais, fadados a não acontecerem. Fala do hiato como o único lugar possível para o encontro.
As cartas escritas por uma mulher, cujo relacionamento foi desfeito, acabam indo parar nas mãos de um homem recém-separado, pai de uma filha de três anos que ele não compreende, virando sua vida ao avesso. As cartas, dia após dia, nove no total, alteram por completo a rotina de Marcos, o personagem que as recebe. E ele sabe que está agindo de forma errada ao receber cartas anônimas, possivelmente endereçadas ao antigo inquilino do apartamento em que atualmente mora, já que possuem o endereço correto, apenas o destinatário não coincide. No entanto, aquilo que começou como um "furto", passa a ser a parte mais importante e esperada de seus dias antes tão monótonos.
Sempre em envelopes azuis, as cartas são assinadas apenas por "A", uma mulher que ainda sofre a ausência do amante. Escrevê-las é uma forma de tentar entender o que ocorreu para o rompimento da relação. Nas cartas, "A" relembra os últimos momentos com seu amante, pessoa ao mesmo tempo bruta e delicada.
A parte final da narrativa desvenda o mistério do romance, após um telefonema: as cartas nunca foram direcionadas ao antigo morador do apartamento. A escritora parece brincar com o destino...
Os capítulos se sucedem entre as cartas enviadas por "A" e as reações do personagem que as lê, capítulos escritos em terceira pessoa.
Pela leitura, fica a lição de que, às vezes, o que temos de mais concreto na vida não passa de ilusão.

Começa assim:
"... Dizem que a separação nunca é um núcleo, uma urgência. Dizem que ela começa em seu avesso. E que é justamente no momento mais suave, o primeiro encontro, o primeiro olhar, que a separação começa a existir. Eu prefiro acreditar que a separação nunca termina, e que o último dia, a última noite, é um instante que se repete, a cada espera, a cada volta, cada vez que sinto a tua falta, cada vez que pronuncio o teu nome. Eu acredito que, ao te chamar, uma estratégia, um encanto, eu seja capaz de fazer com que você se vire e olhe, e, sem perceber, estenda entre nós um atalho, uma ponte." (fl. 07)

domingo, 8 de maio de 2011

El curioso incidente del perro a medianoche, de Mark Haddon

O primeiro livro que li em espanhol. Penso que foi um grande escolha. Fiquei maravilhada com a leitura e posso dizer que, embora não tenha feito curso de espanhol, não tive dificuldade com o idioma, mas é verdade que me socorri de um dicionário para anotar as palavras desconhecidas. Vamos ao livro:
O livro é narrado por Christopher Boone, um menino de 15 anos, autista, sabedor do nome de todos os países do mundo e de suas capitais, que odeia as cores amarela e marrom e ama a cor vermelha e que desconhece as expressões faciais (não sabe diferenciar as expressões de tristeza ou de alegria no rosto de alguém). Nada o irrita tanto quanto ser tocado por outra pessoa e, para se "desestressar", faz contas de cabeça.
Uma curiosidade: os capítulos do livro seguem a sequência dos números primos, começando no capítulo 1 e terminando no capítulo 233 (embora o livro tenha apenas 268 páginas). Isso porque o menino-narrador é apaixonado por matemática e a sua obra é inspirada pela leitura dos romances policiais de Sherlock Holmes, que ele tanto admira.
A narrativa começa com a morte de Wellington, o cachorro da vizinha Sra. Shears. Na tentativa de desvendar os motivos que levaram à morte do "perro", o menino decide escrever o livro, incentivado pela professora do colégio. O problema é que para desvendar o "crime", casos de família são revolvidos, paixões e desamores são trazidos à tona, mortes são superadas (já que a mãe, que o menino supunha ter falecido, está bem viva e levando nova vida em Londres, ao lado do ex-marido da Sra. Shears, amante do pai de Christopher)...
A morte do cachorro é, de fato, desvendada, mas, como se verá, pouco importa o motivo da morte: o que importa aqui é o caminho seguido por Christopher até a página final. O livro é um encontro do menino consigo mesmo e indica a superação necessária de muitos obstáculos e temores. O final é surpreendente. 
Um livro que prende a atenção, como toda boa novela policial, mas com o aspecto interessante de ser narrado por um garoto de 15 anos, com sua visão de mundo. 
Na obra, Christopher nos dá verdadeiras aulas de matemática, resolve difíceis problemas da área e nos mostra como é simples superar problemas aparentemente sem solução: como conseguir se localizar em Londres, para achar a mãe; passar em meio a multidão de pessoas no metrô (sem poder tocar ou ser tocado por elas), entre outos... 
Este pequeno grande livro foi traduzido para 43 idiomas. Aqui no Brasil recebeu o título de "O estranho caso do cão morto". Seu autor foi professor de crianças com deficiência, daí porque consegue narrar, com maestria, a história sob a perspectiva de um menino que sofre da Síndrome de Asperger, uma forma moderada de autismo. 
Adorei o livro e recomendo a leitura! Espero que gostem tanto quanto eu...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Cidade de Deus, de Paulo Lins


A obra, embora volumosa (são 548 páginas na primeira edição), é de rápida leitura. O livro conta a história do nascimento da favela carioca "Cidade de Deus" e de alguns de seus muitos e curiosos personagens. Divide-se em três capítulos: 1) A história de Cabeleira; 2) A história de Bené e 3) A história de Zé Pequeno. 
O autor, Paulo Lins, realmente viveu na Cidade de Deus e sentiu de perto o que os personagens vivenciaram na obra; viu, de verdade, o que os personagens (alguns verdadeiramente reais, tanto que a partir da segunda edição os nomes são modificados por força de pedido de familiares) viram.
A história contada no livro tem relação direta com o alijamento populacional: pessoas são deslocadas de áreas de risco para a nova localidade "Cidade de Deus". Relações de afeto e amizade são destruídas com a forçada mudança e, aos poucos, aquela gente toda tem que reencontrar seu lugar no mundo, mesmo que esse lugar seja longe à beça da "civilização". Para as crianças, porém, tudo é festa, já que o novo local de habitação significa muita área descampada para brincar, correr, soltar pipa e jogar bola. Existe a promessa de uma nova vida pela frente. A obra começa aí. A primeira parte é mais leve, com a violência e o tráfico de drogas ainda iniciantes.
A partir do segundo capítulo pode-se perceber que o tempo da narrativa avança mais rápido (e mais rápido ainda no capítulo final). As crianças cresceram e viraram adolescentes ou adultos necessitados de trabalho, digno ou indigno. Alguns passam a invejar a vida dos bandidos, em contraponto à vida dos "otários", que seriam os trabalhadores com carteira assinada, ganhadores, quando muito, de um mísero salário mínimo mensal. Acentua-se a rixa entre brancos e negros, entre os favelados e os moradores da cidade, entre quem pode comprar o tênis com que sonha e os que têm que roubar para consegui-lo. Acentua-se, também, a violência e a ocorrência de mortes pelo mero prazer de matar o outro. As drogas ganham, de forma definitiva e irreversível, a favela e a classe média já sobre o morro para adquirir maconha, cocaína e o que mais tiver.
Na última parte da narrativa surge um herói de nome "Mané Galinha", que teve a namorada estuprada por Zé Pequeno (após o episódio do estupro, teve seu avô morto em casa). De simples trocador de ônibus, torna-se justiceiro e principal inimigo de Zé Pequeno. No entanto, o que era apenas uma rixa pessoal, vira uma guerra entre gangues da Cidade de Deus. O fim da narrativa é rápido, com inserção de muitos personagens, alguns até mesmo filhos dos personagens presentes no primeiro capítulo. A "guerra" é acentuada no fim, embora o autor, já nas últimas páginas, confira aos personagens desfechos nas histórias de vida, nem sempre positivos, como acontece na própria vida real.
O livro pode ser definido como um romance de "deformação" de um ser, se considerarmos Zé Pequeno como o principal personagem. Embora seja, de fato, um romance de formação de um ser, pois acompanha a vida do personagem da infância à idade adulta.
Quanto ao movimento, o livro pode ser definido como um romance de espaço, porque a narrativa se desenvolve num local específico, dentro da cidade "delimitada", que é a favela Cidade de Deus.
O narrador usa o discurso indireto livre; a narrativa é contada em terceira pessoa. A violência permeia todas as relações, o uso dos palavrões é uma constante na obra.
O romance é de tese, pois dá relevo às condições econômicas e sociais que se juntam para formar, em boa medida, o indivíduo. É de tese porque não dá relevo à descrição pormenorizada dos personagens, já que as histórias de cada um apenas são "pontuadas" na narrativa.
A estratégia da escrita se dá com a interpolação das histórias contadas, cujo tema "violência" se repete em todas elas. A obra, também, pode ser descrita como regionalista, porque o espaço definido e a linguagem são as da favela. A voz dos personagens, inclusive, é tratada no linguajar real, com os palavrões e erros de linguagem.
Um livro cuja leitura me fez repensar o modo de encarar (e entender) a periferia e suas necessidades. Adorei! Virei fã do Paulo Lins e da sua história de superação!

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Lorde, de João Gilberto Noll

Um homem de meia idade, romancista brasileiro, recebe um convite para ir a Londres. Não sabe muito claramente de onde partiu o convite ou o motivo exato da viagem. Só sabe que nada tem a perder. Apenas mudará de solidão: a solidão da vida em Porto Alegre, sem amigos, pela solidão em um país diferente do seu. 
A história começa no aeroporto. Começa, também, a inquietante narrativa do protagonista sobre a misteriosa viagem (ou o chamado para uma "missão", como nos diz Noll).
Chegando em Londres, descobre-se um novo morador da periferia, em Hackney, bairro pobre de imigrantes situado no norte da cidade. Descobre, também, a cidade de opostos que se completam.
A uma certa altura da narrativa (que é bem mais psicológica que narrativa/descritiva), o narrador sai à busca de um espelho. Precisa ver sua própria imagem e saber se houve mudança em decorrência da viagem.
A viagem permite ao protagonista tecer inúmeros questionamentos sobre a vida: a vida que ele levava até então, a vida que ele quer levar dali para frente, a (re)descoberta da homossexualidade, a necessidade de um lugar só seu no tempo e no espaço e a esperança de um novo recomeço, mesmo que à custa de um furto de carteiras (algo impensável para um professor universitário, que ele se tornou depois).
O livro, embora pequeno em quantidade de páginas (são 111), é cansativo. Não se sabe muito bem o que é real e o que é delírio na narrativa. Trabalha o autor com uma forte imagem de náusea, de vômito, o que se vê com o desconforto físico sentido muitas vezes pelo personagem principal.
A escolha de Londres se deve ao fato de ser esta a mais globalizada das cidades. E a figura do "escritor" nos é mostrada como um desmemoriado, como aquele que quer esquecer. E, embora o narrador diga rejeitar a literatura, acaba redimido por ela (pela língua portuguesa que ensinará numa universidade). 
Passa-se a ideia de um sujeito que está sempre em trânsito, que nunca chega a lugar nenhum - até o dia da sua descoberta. Mas ele descobre-se outro, completo e livre. Vale a leitura!

terça-feira, 26 de abril de 2011

O filho eterno, de Cristovão Tezza

Antes de começar a ler esse pequeno grande livro (222 páginas), me pus a indagar: "Ora, mas todo filho não é eterno?". E percebi que o Felipe, da história, é mais eterno que os demais filhos, se é que isso seja possível. No início da obra, o pai vê seu filho eterno como uma condenação...
O personagem principal do romance é um escritor sem muitos louros. Alguns livros engavetados, alguns "nãos" e nenhuma perspectiva de uma vida que não fosse aquela vida sustentada pela mulher. Até o dia em que se depara com a notícia da gravidez da esposa. Compreende, então, que deixará de ser o centro das atenções; terá que, à força, crescer e deixar que outra pessoa seja a criança em sua vida. Talvez até deixe de ser um "homem provisório", como sempre se intitula, para ter uma obra só sua: um filho.
E eis que nasce a criança. Só tem um problema: ela tem síndrome de Down. Seu nome é Felipe e, nos idos dos anos 80, quando do nascimento, a sociedade ainda era bastante preconceituosa com crianças portadoras da anomalia consistente na trissomia do cromossomo 21. 
O pai, então, em vista desse nascimento que não foi comemorado, espera que a criança morra ou, ao menos, que o diagnóstico não seja confirmado pelos médicos. Nenhuma das duas coisas acontece: a criança cresce, saudável, embora portadora da síndrome e o pai, aos poucos, se sente verdadeiramente pai. 
O livro acompanha a evolução da paternidade e da relação de filiação (sempre sob a ótica do pai) ao longo de vinte anos, embora quase sempre relatado no presente, o que se chama de "presente histórico".
Pequenos avanços se transformam em enorme alegria para o protagonista da história, que vai, ao longo do livro, se encontrando, cada vez mais, no papel de pai e no de escritor. Dos "nãos" iniciais, o protagonista se torna professor universitário e escritor com livros publicados em importantes editoras. O filho, condenado pela sociedade a não poder ser nada nos anos 80, torna-se artista.
A leitura da obra é difícil, pesada, mas compensa. É uma "quase biografia," já que o autor, Cristóvão Tezza, é mesmo pai de Felipe, portador da tal trissomia do cromossomo 21. Porém, o livro é ficcional, até porque escrito em terceira pessoa e com o necessário distanciamento no tempo (já que o autor precisou do passar dos anos para escrever a obra).
Pode ser visto como um romance de formação: formação do menino que não consegue se achar e do pai que se acha no limbo. Ou, dito de outra forma, do menino deformado fisicamente e de seu pai, deformado socialmente.
O curioso é que o sucesso e reconhecimento, pelo grande público, de Cristovão Tezza surgiu em vista desse livro, do seu "O filho eterno". Digno de aplausos!

domingo, 24 de abril de 2011

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino

Embora o título do livro seja longo, muito longo, a leitura dessa obra de Marçal Aquino flui. São 229 páginas, mas lê-se rápido e não se esquece rapidamente aquilo que se leu. O livro fala de amor. Além de amor, fala da vida, de morte, de doenças mentais, de ciúmes, de traição, de obsessões, de perdas e recomeços. São três histórias dentro da história. Tem suspense, mortes e renascimento. Vamos à obra.
O narrador e personagem principal é Cauby ("como o cantor", como sempre brinca o próprio narrador), um fotógrafo paulistano que, por circunstâncias da vida, vai parar no interior do Pará-PA, a fim de fotografar prostitutas e trabalhadores de uma mineradora local. O relato é feito de um momento futuro regressando ao passado. O narrador personagem sabe como as coisas vão acontecer e antevê a própria morte (que não chega a acontecer).
A história de amor envolve Cauby e Lavínia, a mulher do pastor da localidade. Cauby se vê encantado, já à primeira vista, pela mulher que encontra na loja de um amigo, revelando fotografias, uma atividade comum entre esses três personagens (Cauby, Lavínia e o amigo dono da loja, de nome Chang). Por ocasião desse primeiro encontro, Cauby fica com o retrato da moça. Daí começa o desenrolar da história de amor principal do livro. Instável e portadora de dupla (ou múltiplas, como se verá depois) personalidade, Lavínia seduziu Cauby e não se escondia para os encontros vespertinos ocorridos no laboratório deste. Era chamada por Cauby de "a dona da tarde". O livro segue o relacionamento: daquela paixão inicial até o clímax da necessária despedida entre os amantes.
Como ingrediente de toda boa ficção, Cauby descobre no momento (quase) final que Lavínia espera um filho seu e desiste de seguir adiante. Ocorre que o marido, de nome Ernani, falece e Cauby, por conta do relacionamento com a mulher daquele, é o principal suspeito do assassinato, chegando a ser preso e linchado pela população local, que chamava o morto de "santo". O narrador tem ossos fraturados, perde o olho direito, tem redução na audição, mas diz que faria tudo de novo, porque ama de verdade Lavínia, que anda sumida nesse final da obra.
Um amigo de Cauby acaba por localizar a moça, que fora internada meses antes, num hospício. Completamente dopada e sem reconhecer Cauby, o reencontro entre os dois é emocionante. A mulher perdeu a criança por força do tratamanto à base de choques elétricos recebido no hospital psiquiátrico e, parece, perdeu a própria vida anterior. Agora quer ser chamada de "Lúcia".
Cauby reencontra-se, ao menos duas vezes por semana, com a amada. Ela aceita ser cortejada e tem a auto-estima reavidada com idas a salão de beleza e cinema, compras de roupas etc. Reatam (ou iniciam) o namoro como dois adolescentes. Lúcia até aceita (e gosta) de ser chamada de Lavínia, para alegria de Cauby. O narrador termina a história dizendo-se mais feliz que 97,6% das pessoas, porque conheceu o amor, que seria o sentimento mais próximo da felicidade que se pode experimentar.
Paralela à história principal, também é contada a história de amor entre o Careca, que é morador da pensão da Dona Jane, onde também vivia Cauby, e a Marinês. Ambos trabalhavam no mesmo banco e a história de amor, unilateral, diga-se, começou nas dependências do próprio banco. Marinês gostava de saber-se cortejada pelo Careca, de quem era muito amiga, mas não desgrudava do noivo Carlos Alberto. O noivo falece em um acidente de carro dias antes do casamento e Marinês se entrega à depressão e à loucura, atentando contra a própria vida, não sem antes entregar seu corpo virgem ao Careca. O amor obsessivo deste dura a vida inteira e segue depois do falecimento da amada, dando sentido à existência do personagem.
Outra história contada é a leitura do livro "O que vemos no mundo" pelo narrador. Ele intercala a leitura dessa obra com o desenrolar da sua própria história de amor. Entra como uma narrativa acessória, que qualifica a narração da história principal.
Enfim, o livro é envolvente, de leitura rápida e inesquecível, ao menos para quem já teve um amor de verdade...